A
SAGA DO N/M “ ATLÂNTIDA”
Depois de duas
Comissões de Inquérito – uma na Assembleia Regional e outra na Assembleia da
República – os representantes do povo, por ignorância ou miopia
político-partidária, não foram capazes de concluir o óbvio esquecendo ser esse
o seu dever.
Em 2006, lançou a
Empresa Pública regional ATLÂNTICOLINE dois concursos públicos, sendo um:
Concurso Público Internacional n.º 1/2006 – construção de navio com
capacidade mínima para 790 pessoas e 140 viaturas – preço base 39.950.000,00 €,
cláusula 22ª. do Contrato;
Eram
peças dos concursos os Cadernos de Encargos dos quais faziam parte os Arranjos
Gerais e as Memórias Descritivas.
De
realçar que os Arranjos Gerais e as Memórias Descritivas eram, nos termos do
contrato, elementos meramente indicativos – ponto 1 da cláusula 4ª. do contrato
– cabendo a quem ganhasse os concursos o
desenvolvimento dos respetivos projetos.
Relativamente
a estes dois concursos, estava convicto que os mesmos ficariam vazios – não foi
por acaso que os ENVC ficaram sozinhos – porque, tendo por base os elementos
disponíveis, era minha convicção, infelizmente confirmou-se, que muito
dificilmente se conseguiria construir os navios definidos nos contratos.
O contrato foi
celebrado a 21 de setembro de 2006.
Logo
que de tal tive conhecimento, remeti em 4
de outubro de 2006 ao então Secretário Regional da Economia, documento
escrito, no qual, entre outras coisas, chamava a atenção para:
1-
Concurso Público
Internacional n.º 1/2006 – construção de navio com capacidade mínima para 790
pessoas e 140 viaturas.
A
definição das características principais do navio e da especificação das
variáveis de operação contêm, por um lado, inúmeras lacunas e, por outro lado,
exagerada definição de equipamentos os quais só poderão e deverão ser definidos
após o desenvolvimento do Projeto;
Existem
situações de conflitualidade entre o Caderno de Encargos e o Programa do
Concurso, nomeadamente no que diz respeito à definição de camarotes, autonomia
do navio, requisitos de manobrabilidade, etc.;
Impossibilidade
de o navio ultrapassar os 17 nós;
Etc.
Fase de
construção.
A
fase de construção foi tudo menos normal e iniciou-se ilegalmente já que no
ponto 2 da cláusula 4ª. do contrato lê-se: “ A SEGUNDA OUTORGANTE obriga-se a submeter o projeto de construção do
navio à aprovação das competentes entidades nacionais, à Sociedade de
Classificação e à PRIMEIRA OUTORGANTE, não podendo a construção ser iniciada
sem que seja aprovado o projeto de construção elaborado a partir dos ensaios em
tanque.” Este foi o primeiro
momento em que o contrato deveria, ainda sem prejuízos para qualquer das partes
envolvidas, ter sido denunciado. Apenas em 2007, deram entrada no IPTM
os primeiros elementos relativos ao navio, os quais tiveram da parte deste
parecer desfavorável.
Contratualmente
e de acordo com a Memória Descritiva
visada pelo Tribunal de Contas, o navio “ATLÂNTIDA” destinava-se ao tráfego
internacional/Internacional Voyage utilizando como combustível HFO/óleo
combustível pesado.
Foi
elaborada e assinada uma segunda Memória
Descritiva na qual se constata que:
O
navio passou a Short Internacional Voyage. Tal implica que o navio só poderá
navegar entre portos que não distem mais de 200 milhas náuticas, podendo ter
menos embarcações salva-vidas;
O
combustível passou a marin diesel;
Para
obtenção da velocidade de 19 nós, reduziu-se a margem de mar de 15% para 5% com
implicações diretas no desgaste dos equipamentos propulsores e no aumento do
consumo.
Esta nova Memória Descritiva, para além de
provocar um aumento significativo dos
custos de exploração, não tem validade legal, sendo que a receção do
navio só poderá ser efetuada com a Memória Descritiva visada pelo Tribunal de
Contas.
Em
29 de dezembro de 2006, 8 de janeiro de 2007 e 19 de fevereiro de 2008, foram assinados os primeiros aditamentos ao contrato. Por
falta de espaço, não analisarei estes aditamentos. Contudo, os mesmos têm muito
que se lhe diga.
Em
21 de dezembro de 2007, o IPTM
alerta para o facto de, para além de faltarem lugares para os passageiros se
sentarem, também haver graves problemas na compartimentação dado terem
considerado o fator de compartimentação 1 – existência de embarcações
salva-vidas a cada bordo para 50% dos passageiros embarcados. Como tais
embarcações não existiam e não se podiam instalar, teriam de passar o fator de
compartimentação a 0,5 (regra 6.5.1 capitulo II-1 da SOLAS), isto porque o
“ATLÂNTIDA” só tinha a cada bordo embarcações salva-vidas para 35% dos passageiros
embarcados. Na prática, só tinham considerado um compartimento alagado quando
deviam ter considerado dois.
Em
29 de agosto de 2008, foi assinado o quarto
aditamento ao contrato. Este aditamento incluía algumas questões mais ou
menos irrelevantes, sendo porém duas muito relevantes:
Alteração da
compartimentação
cuja responsabilidade é do estaleiro pois deriva dos problemas do projeto;
Alteração
do prazo de entrega para 30 de setembro de 2008.
Nesta
fase muito complicada da construção, eram tantos os problemas que este
aditamento só pode ter tido como objetivo preparar, a todo o custo, a receção
do navio sem ter em consideração as questões técnicas.
Os problemas nesta
fase são verdadeiramente dramáticos. Reiniciam-se os trabalhos de
recompartimentação e de equalização, sem aprovação prévia por parte de
Sociedade Classificadora e do IPTM.
No
seguimento do atrás referido, foi pedido parecer à Det Norske Veritas-DND com o
seguinte objetivo; Avaliação do sistema
de equalização e das condições de equilíbrio final em situação de avaria.
No parecer da
DNV pode ler-se:
Os
cálculos foram inexplicavelmente mal feitos. Mais uma vez está em causa a incompetência do Gabinete de projeto dos
ENVC;
Nestes
cálculos devem ser utilizadas as curvas de mínima GM ou seja da GM intacta
corrigida com o efeito do embarque de água (perda de impulsão, aumento de
imersão, variação do centro de gravidade, correção do efeito de espelho
líquido, etc.);
Como
por erro, grosseiro e inexplicável,
do Gabinete do Projeto dos ENVC se utilizaram para efeito de cálculo as curvas
de GM intacta (situação normal e sem avaria) empolaram artificialmente a GM
mínima, para a condição de full draft (máxima
imersão) em valores que variavam entre 1,6 metros e 2,0 metros. Tal teve como
resultado que para baixar o centro de gravidade e recuperar a estabilidade,
intacta e em avaria, houve que embarcar lastro aumentado a imersão, o
deslocamento e o respetivo calado – colocando limitações de operação em alguns
portos – e reduzindo, drasticamente, a velocidade.
Como o
desenvolvimento do projeto era da responsabilidade dos ENVC e esta é uma falha
muito grave, tornou-se na principal razão para aqueles assumirem toda a
responsabilidade.
Como
resultado, o navio tem graves problemas para satisfazer os requisitos da SOLAS
relativos à estabilidade em avaria (SOLAS Cap. II-1 Parte B regra 8).
A
título de exemplo, para embarcar lastro fixo até resolver o problema de
estabilidade, reduzir-se-ia o número de carros transportados de 140 para 30.
Em
31 de agosto de 2008, foi levada a cabo uma prova interna de estabilidade da
qual se concluiu que:
O
deslocamento leve era superior ao projetado em cerca de mais 370 toneladas;
O
centro de gravidade estava, relativamente ao projetado, subido cerca de 600 mm;
O
navio não cumpria com os critérios de estabilidade intacta e muito menos em
avaria.
Menos
porte;
Menos
velocidade;
Mais
consumo de combustível;
Mais
custos de exploração.
Todos
estes problemas são consequência da forma inadequada como foi desenvolvido
pelos ENVC o projeto e o processo construtivo e são da exclusiva
responsabilidade daqueles.
Na minha modesta
opinião, a partir daqui, o navio começa a atingir contornos de sucata, como o
comprova o valor pelo qual foi vendido. Estamos pois perante nova oportunidade
de denunciar o contrato.
Como
consequência de tudo isto, em 15 de dezembro de 2008, remeti ao novo Secretário
Regional da Economia um documento escrito em que resumidamente chamava a
atenção, entre outras coisas, para:
Relativamente a esta construção, foi pelo Presidente do Conselho de
Administração do referido estaleiro proferida a seguinte afirmação: " Essa história do navio dos Açores é uma
história muito triste, o projetista fez um mau trabalho e uma série de
disparates, os estaleiros estão a estudar uma solução para apresentar ao
Governo Regional, para verificar se, com as alterações, vão conseguir gerir o
navio ".
Juntando esta afirmação a outras informações públicas, porque
veiculadas em diversos órgãos de comunicação social, confirmadas e/ou não
desmentidas pela ATLÂNTICOLINE, podemos facilmente constatar o seguinte:
Seja o que for que esteja a acontecer com esta
construção, é muito grave;
Para a Região, a preocupação centra-se na
última parte da afirmação proferida pelo Presidente do Conselho de
Administração do Estaleiro ou seja, "…,
para verificar se com as alterações vão conseguir gerir o navio ";
Desta parte da afirmação resulta, claramente,
que as preocupações da Região se devem centrar nos critérios operacionais, já
que são esses que colocam, ou podem colocar, limitações e /ou entraves à gestão
comercial e /ou operacional do navio;
Das anomalias detetadas e deficientemente
corrigidas – no início de dezembro ainda não tinham sido aprovadas pelo IPTM –
resulta claramente uma profunda diminuição da fiabilidade do navio e um aumento
brutal dos custos de exploração;
Resumindo; É possível concluir, sem qualquer
margem para dúvidas, que o navio "ATLÂNTIDA":
Não é fiável;
Não cumpre com os critérios operacionais;
Terá limitações devidas a excesso de calado;
Verá agravados os custos de exploração, fixos
e variáveis;
Qualquer tentativa apressada para o receber
agravará todos estes problemas.
Nesta fase, porque eram os ENVC o único responsável pelos
"estragos" - pese embora alguma conivência da ATLÂNTICOLINE -
vejam-se os aditamentos, na minha modesta opinião, deveria a Região colocar a
máxima pressão possível sobre aqueles, dando indicações claras sobre a
possibilidade de não receber o navio, até porque a generalidade das graves
deficiências detetadas eram impossíveis de solucionar na fase em que se
encontrava a construção.
Face
a todos estes problemas que levaram ao incumprimento do contrato por parte dos
ENVC, as partes envolvidas – Estaleiros Navais de Viana do Castelo e
Atlânticoline – acordaram por fim à relação contratual, decisão que foi
homologada pelo Tribunal Arbitral e que, por isso mesmo, tem força de sentença
judicial.
Não
deixa de ser curioso que a partir da tomada de posse do Governo Regional saído
das eleições regionais de 2008, deixaram de haver aditamentos duvidosos e
situações menos claras e passou a vigorar, exclusivamente, o que estava
contratualizado.
Não
me querendo pronunciar sobre o processo de concessão dos ENVC que desconheço
creio ser possível concluir que não foram os trabalhadores dos ENVC que
destruíram a empresa. Os trabalhadores são, nas suas diferentes especialidades,
dos melhores do mundo. Também não foram os casos ATLÂNTIDA e ANTICICLONE quem
destruiu a empresa, embora tenham dado algum contributo. Na verdade quem destruiu os ENVC foram vários “boys” partidários, incompetentes e irresponsáveis, que, desde a
nacionalização, foram sucessivamente nomeados para a administração pelos
partidos no poder.
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